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Ministério Público Federal diz não à mordaça às biografias

10 outubro 2013

Imagine um livro sobre o Primeiro Reinado que não mencionasse o pendor de D. Pedro I para as aventuras extraconjugais, determinantes para a concessão de títulos e a formação de laços políticos no Império, e mesmo para a eleição do local onde foi proclamada a Independência do Brasil. Conta-se que, na data de 7 de setembro de 1822, o então príncipe-regente deixava a casa da principal amante, Domitila de Castro Canto e Melo, a marquesa de Santos, para dizer "Independência ou morte" à beira do riacho Ipiranga, em São Paulo. É um cenário assim o proposto pelo procurador regional da República e professor de Direito Constitucional da UERJ, Daniel Sarmento, em artigo reproduzido no parecer do Ministério Público Federal sobre a Ação de Inconstitucionalidade Indireta (ADI) 4815, pedindo que sejam declarados inconstitucionais os artigos 20 e 21 do Código Civil, aqueles que condicionam a publicação de biografias ao aval dos personagens retratados ou de seus herdeiros. A ação, proposta pela Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel), deu entrada em julho de 2012 no Supremo Tribunal Federal. Favorável ao pedido da Anel, o parecer do Ministério Público Federal é um documento lúcido sobre a questão, além de uma aula de postura democrática, mostrando como o sistema atual asfixia a liberdade de expressão, ameaça a democracia e prejudica a sociedade, alijada de informações de interesse coletivo. 


Anexado em junho à ADI da Anel, que está sob os cuidados da ministra Cármen Lúcia, o documento seguia inédito, porque ainda não havia chegado à imprensa. É revelado em boa hora, já que a Folha de S.Paulo acaba de noticiar que um grupo de medalhões da MPB, reunidos na Associação Procure Saber, sob a liderança da empresária Paula Lavigne, quer impor restrições ao que pedem editores, autores e leitores através da ação da Anel e também do projeto de lei 393/2011, de autoria do deputado Newton Lima, em tramitação na Câmara dos Deputados. Choca saber que gente como Caetano Veloso, Gilberto Gil (aliás ex-ministro da Cultura do País) e Chico Buarque, um dos maiores alvos da censura na ditadura, estão unidos contra a liberdade de expressão e o acesso à informação. "Tal exigência (de prévia autorização), ainda que motivada pelo propósito de proteção de direitos da personalidade, configura restrição legal manifestamente desproporcional aos direitos fundamentais à liberdade de expressão e ao acesso à informação, consagrados pela Constituição da República", diz o texto do Ministério Público Federal, assinado por Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, procuradora-geral da República então em exercício. 


"O regime legal questionado gera ainda consequências deletérias sobre a esfera pública democrática e a cultura brasileira. (…) Tal sistemática viola não apenas o direito dos autores e editoras das obras proibidas, como também o de toda a sociedade, que se vê privada do acesso à informação relevante e à cultura", diz o parecer. Lembra ainda que a liberdade de expressão só é posta em segundo plano em circunstâncias excepcionais, como quando há racismo no discurso. Não é o caso de uma figura pública que se ofende por ter uma falha, defeito ou história qualquer exposta a um leitor ou espectador – a ADI também prevê que obras audiovisuais prescindam de autorização. O Ministério Público Federal entende que, pelo fato de já ser pública, não faz sentido a personagem cobrar privacidade absoluta sobre a sua vida. "Sem embargo, é possível reconhecer uma prioridade prima facie da liberdade de expressão e do direito à informação sobre os direitos da personalidade, quando se tratar de personalidade pública", diz o texto. Que pontua: "Uma democracia real pressupõe a existência de um espaço público robusto e dinâmico, em que os temas de interesse social possam ser discutidos com liberdade. Em outras palavras, a democracia exige ampla proteção da liberdade de expressão". Uma medida – 25 centímetros – levou as filhas do jogador de futebol Mané Garrincha a processar o escritor Ruy Castro pela publicação da biografia Estrela Solitária: Um Brasileiro Chamado Garrincha, lançada em 1995. 

O número se refere ao tamanho do órgão sexual do ídolo e o detalhe rendeu ao autor e à editora Companhia das Letras uma ação por danos morais e materiais, em 2001, ano em que Ruy Castro foi condenado em primeira instância, em 2001. O título chegou a ser impedido pela Justiça de ser vendido por um ano. Após recorrer, o autor foi eximido do processo por danos morais pelo desembargador João Wehbi Dib da Segunda Câmara Civel do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que viu como elogio a referência ao tamanho avantajado do órgão sexual de Garrincha. A editora e Ruy Castro, porém, não escaparam da condenação por danos materiais e tiveram que repassar 5% do valor de capa de cada exemplar vendido às filhas do jogador. Em texto publicado na internet, a presidente da Procure Saber, Paula Lavigne, ex-mulher de Caetano Vaeloso, alega que autores de biografias muitas vezes buscam se valer de informações da vida privada de uma personagem pública para vender mais livros. “Expor a vida íntima e privada de homens e mulheres públicos, os pedaços de vida que essas pessoas têm e que são absolutamente privados, não serve aos nobres objetivos da instrução e do conhecimento, e sim para alimentar uma das mais conhecidas fraquezas do ser humano: a fofoca. Detalhes picantes, dolorosos ou indiscretos da vida de alguém ‘vendem’ biografias. Cortar a “liberdade” dos editores de usar esse recurso é uma ameaça às vendas”, diz a empresária no texto. Também para isso o parecer do Ministério Público Federal tem resposta. 


O documento lembra que é trabalho muito subjetivo definir o que é fofoca e o que não é – em outras palavras, o que é informação de interesse da coletividade ou não. E, que, portanto, seria inviável (para não dizer arbitrário) proibir de antemão a divulgação de dados pessoais das personagens: “Esse tipo de filtragem prévia dos fatos suscetíveis de divulgação inviabilizaria o gênero literário das biografias não autorizadas, ‘tendo em vista o grau de subjetividade do julgamento sobre a relevância de detalhes da v ida de qualquer biografado".Curiosamente, porém, a solução proposta por Paula Lavigne não seria vetar determinadas informações, usadas, segundo ela, para vender livros. E sim dividir os lucros com a comercialização das obras. Um tuíte apagado do perfil de Caetano Veloso no Twitter, página controlada pela sua empresária e ex-mulher, dizia: "Querem fazer biografias sem autorização? Ok! Mas paguem ao biografado". Além de cômica, a proposta sugere uma outra questão: por que cantores e compositores não pagam àqueles que os influenciaram e inspiraram ao longo da carreira? Quantas pessoas não viraram tema de música sem receber um centavo por isso? Quem está sendo malandro nessa discussão, afinal? ( Com informações da Veja)

 
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